segunda-feira, 11 de agosto de 2025

A CAVERNA

Estou partindo para a caverna.

O Eremita, foi chamado para seu refúgio.

O mundo agora não apresenta qualquer benefício, é chegada hora do movimento de individuação, contemplação de si mesmo, após uma grande abocanhada da fera interior que ameaçou morder e não o fez e esse movimento trouxe para mim, um grande abismo existencial.

Talvez de fato, já precisava passar por tantas coisas para entender que será necessário meu regresso para o consciente, trabalhar as premissas constituídas através da dor e da punição, tanto social quando pessoal. Retardar esse acontecimento, só me tornaria menos humano e eu já o sou, virei um animal, ferido, com medo e terrificado, procurando um lugar quente para adormecer durante esse inverno rigoroso.

Do lado de fora, não tenho mais ninguém, me tornei um peso morto, na frequência baixa, uma luz apagada em meio ao cenário de destruição. Não quero mais ser preocupação de alguém, quero ser o alguém.

Cuidarei de mamãe, conviverei com sua loucura, lhe dando o devido cuidado do que ainda sobra para ela, depois de tudo que ela fez por mim, esse é um ato de humildade reconhecimento. Sei que isso, irá me trazer outras consequencias, mas, menores do que lá fora. O perigo de conviver com a loucura, não vai me tornar mais insano e sim mais condicionado a procurar a ficar em mim. 

Vou ter que contar com a pouca lucidez, procurando os lugares aonde consigo andar sem chegar à beira do precipício, uma aventura que não mais me dá prazer.

Estou no limite entre a loucura e a sensatez, amarrado por uma corda que parece um cordão umbilical, que deveria ter sido jogado fora quando eu nasci, mas guardei em algum lugar bem escondido, aonde só eu e o mundo pudessem ver.

Já com o corpo ferido e a alma voltada a voracidade, não mais tenho para onde escapar, os postes de luz da cidade já me trazem vertigem e melancolia.

Não sinto vontade nem de ver o mar e nem apreciar o horizonte cinzento, perdi o passo enquanto tentativa me encontrar em pequenas coisas que não faziam mais sentido algum.

Minha fera interior, agora me atormenta, estou procurando deixá-la o mais confortável possível para que ela não me morda e tenho sentido um grande tormento ao acessar lugares diferentes em mim, como se todos os lugares por onde eu passasse, me desmontasse por inteiro e nesse prelúdio, fico quase vazio, esgotado e exausto, subir a montanha todas as vezes, tem me deixado fraco e desanimado.

Me fechar do mundo pode parecer um colapso total, mas não o é, vez que, nada mais faz sentido algum aqui fora e ali também não, só um grande alvoroço que me quebra o lado poético e destituiu meu lado sentimental, propagando em minhas estadias, um terremoto eminente toda vez que toco minha alma.

Minha alma, ferida, partida em mil pedaços, despede-se deste vão que tornou-se o mundo que habito, transfigurado, participo de meu próprio velório, observando cada parte do meu corpo se desconfigurar, contorcer para um ato de pouca coragem, exaltando uma demolição existêncial.

O modo contemplativo deste processo, ainda estou tentando buscar, talvez em um lugar aonde eu nunca tenha habitado, a solidão total.

Estar só sempre estive, fiz e faço tantas coisas com meu eu, mas ele não tem fornecido a energia que preciso para ficar vivo aqui do lado de fora, só me sabota, me colocando entre paredes frias e nuvens cheias de tristeza e incertezas.

Cada pensamento que tento instaurar a respeito das coisas que tem me acometido, fico cada vez mais embriagado com minha falta de solidez e firmeza, não consigo andar sem cambalear. 

Estou imundo, impuro, parece que estou dias sem tomar banho e estrangulado pelos fatos atuais, vou me despedindo de algumas coisas que eu carregava, só me sobrando algo fundamental para voltar para a caverna, o amor.

E este, sim, tem a força que ainda me move para algum lugar, meu alimento, o que não me torna tão severo e árduo comigo mesmo, um lugar aonde eu ainda consigo sonhar com uma parte boa de mim, que ainda nem eu ou ninguém pode me destituir.

Me tornei um ser hibrido, metade fera e a outra quase humano, com muita raiva de tudo e dos fenômenos e situações no qual fui inserido por ser tão arisco e lutar uma luta de mil anos contra todo perigo que eu apresentava a mim mesmo.

Uma epopeia trágica, com condições de guerra propícias para uma derrota gigantesca, agora entender que estive lutando contra eu mesmo, doloroso demais o é. Meu inimigo me conhece bem, sabe de todas as minhas falhas e de minhas fraquezas, tem sido constrangedor o que ele me demonstra, o que joga na minha cara todas as noites.

Covarde!

Gostaria de lembrar como foi a dor de ter sido mordido por um cachorro quando era menor, quando fui tentar dar um beijo na boca dele e ele me instaurou como fera, acho que houve algo ali, não foi só meu nariz e queixo que foram danificados. 

Não consigo lembrar da dor, mas acho que sofri alguma espécie de mutação, de lá em diante, o mundo começou a me devorar, pedaço por pedaço, sem escolha eu fui apenas me afundando em mágoas, tentando ser forte mas com a alma dilacerada, o sangue escorria de minhas memórias, tanto que de repente, nem elas queriam mais fazer parte do lado bom que eu tinha em mim.

Quando pequeno, pegava a bicicleta e acreditava que iria desbravar o mundo, o cheiro das arvores e plantas aquela cidade toda diante de mim, me deixava feliz e nostálgico, um guerreiro em seu campo de batalha aonde o desconhecido me fazia querer ser mais forte.

Hoje, enfraquecido por essa coragem, não tenho mais minha bicicleta, entre em ônibus, cheios de pessoas que desconheço, as árvores são cada vez mais difíceis de observar, só o caos dentro destes lugares, aonde todos reclamam de alto, escutam musicas altas, desrespeitam tudo em si mesmo.

O mundo virou um lugar de desconexão total, aonde as pessoas estão em seu ato final, virando empreendedores de si mesmo, já não conversam com as feras, não conseguem ver o outro, não pensam mais na natureza, não se conectam com o originário, estão abandonados e despatriados, só caminhando em mão dupla sem lugar para chegar.

Assim, depois de 500 anos, o homem se desconectou da sua essencialidade, sei que existem muitas pessoas lutando contra essa peste antropocêntrica, mas as raizes são profundas, os vulcões começaram a sua erupção, os mares congelados que guardavam toda historicidade da humanidade, agora estão desmanchando, revelando a rasa realidade humanóide.

Não temos para onde fugir, as montanhas estão perigosas, os animais tentam cuidar delas ferozmente, a natureza pode continuar sem nós, mas nós sem ela, impossível.

E o que isso tem relação com meu processo?

Lembro de ter lido um livro da Natalia Marttan, sobre uma experiência dela quando estava na floresta gelada e foi mordida por um urso, sangrava tanto, pegou seu canivete de sobrevivência e afugentou o a fera, mas neste evento, ficou com a mordida dele, com o peso de toda uma experiência que a transformou em observadora do mundo e atuando em sua própria percepção. O que mais fascina e trás a interrogação é que ela, ainda espera que a fera não volte para terminar o serviço, o evento foi traumático, foi um processo de individuação tão forte que fez com que ela voltasse para dentro de si mesma para tentar compreender porque não havia se tornado fera quando foi mordida.

Esses questionamentos, trazem de volta um novo pano de fundo, a busca por si mesmo diante de um ato qualquer, um dia qualquer, sem fundamentação alguma, somos acometidos por eventos maiores do que podemos aguentar e arrebentados e metade fera, temos que voltar para a caverna com o que melhor encontramos nessa jornada,  no meu caso, levo o amor, a única coisa que me sobrou.

A minha loucura já está instaurada, nitidamente minha falta de lucidez se faz cada vez que a noite cai, aonde fico neutralizado pelas horas que se dão em meio a meu caos mais absurdo, aonde não consigo pensar nada só viver um inferno na terra.

Ontem a noite, minha amada me deu adeus, depois de eu ter magoado e destruído seu coração, através de um ato de covardia, tentei me aproximar de algo e quando percebi fugi, mas só por ter ido, já me dilacerou a alma e pela primeira vez, a culpa se alojou em mim.

Me sinto imundo sem ter ao menos pulado na lama, como se pensar na lama, corrompesse toda uma existência, porque mexeu no meu lugar mais sagrado, meu sentimento que me faz vibrar, o amor.

Eu ainda sou um romântico, sem benção e sem concessão de juízo perfeito, só conduzido por algo que é maior que minha sanidade e humanidade, sentido esse que, me faz retornar para as origens de mim mesmo, procurar o que me fez ficar perdido por tanto tempo e sem nada para refutar. 

Na tragédia, sorrir é um terror profano, então me despeço deste mundo, em pedaços, com minha mochila cheia de sentidos para serem re-significados e o amor para me aquecer e não me deixar fugir do que tenho de bom, minha esperança e lealdade.

Eu volto, para contar cada noite que ficarei dentro de mim, vocês vão adorar o furacão vívido que habita em mim e que me condena a morte todos os dias.

Aqui fora, tem sido solitário demais, já não consigo mais me comunicar com ninguém e falar sobre o que estou passando para estar transfigurado em latim ou sanscrito, se eu contar, ninguém irá entender e só julgar minhas narrativas, me deixando no lugar de fera ou vítima, dois lugares aonde não posso vivenciar o agora.

Até breve!